Teologia do livro de Rute



A autoria do livro de Rute é incerta. Segundo o Talmud o livro seria da autoria de Samuel (Baba Bathra 14b), mas é pouco provável; parece que Davi era bem conhecido na época em que o livro foi escrito e Samuel já estaria morto. Uma data possível para o livro seria o século 10 a.C., visto que o livro não cita Salomão. (CUNDALL et al., 1968, pp. 218 – 219; GLEASON, 1974, p. 204).[1]

A história narrada no livro de Rute se passa no período dos juízes. O período dos juízes foi marcado por diversas apostasias do povo de YHWH. Quando Josué morreu o povo ficou sem um líder, e por diversas vezes seguiu as práticas pagãs dos povos vizinhos (Jz 2. 11, 17, 19; 3. 6; 4. 1 – 2; 6. 1; 8. 33; 10. 6; 13. 1; 17. 6, 21, 25). Toda vez que Israel se corrompia, YHWH mandava nações pagãs para subjugá-los, como havia sido previsto no contrato de aliança (Dt 28; Lv 26). Porém, assim como Israel caía em pecado e era subjugado, também se arrependia, e quando isso acontecia, eles clamavam a YHWH por socorro; Ele, então, levantava juízes para libertar Seu povo e lhes dar descanso (Jz 2. 16, 18; 3. 15; 4. 3; 6. 7; 10. 1). Os juízes não eram como os juízes dos dias atuais; antes, eram líderes militares guiados pelo Espírito de YHWH para libertar o povo (LASOR et al., 2002, p. 166).
No período dos juízes Elimeleque e sua família migram de Belém para as terras de Moabe por conta de uma fome em sua terra natal. Os dois filhos do casal, Malom e Quiliom, se casam com mulheres Moabitas, Rute e Orfa. Por motivos não mencionados no livro Elimeleque e os dois filhos morrem em Moabe e Noemi, sua esposa, ao saber que a fome havia cessado em Belém decide voltar. Ela insiste para que suas duas noras retornem para a casa de seus pais; Orfa volta e Rute decide acompanhar sua sogra para sua terra natal. Estabelecidas em Belém elas precisam de comida e Rute vai até as plantações de Boaz, um parente de Noemi, para respingar cevada e trigo. Boaz como parente próximo é lembrado por meio de uma estratégia engenhosa de que ele deve resgatar a terra e a jovem Rute. O resgate acontece e os dois se casam dando um neto para Noemi.
2 ESTRUTURA LITERÁRIA
Em sua teologia Bruce Waltke (2015, pp. 949 – 950) propõe uma estrutura de quiasmo para o livro que será apresentada abaixo.
A Noemi: idosa demais para ter filhos (1.1-22)
  B Apresentação de um possível resgatador (2.1)
    C Rute e Noemi fazem um plano (2.2)
       D Rute e o campo de Boaz (2.3)
         E Boaz vem de Belém (2.4)
            F Boaz indaga: “Quem é esta moça?” (2.5-7)
              G Rute se torna parte do clã de Boaz (2.8-18)
                  H Noemi abençoa Boaz (2.19)
                     I Boaz, um resgatador em potencial (2.20)
                        J Rute se junta aos trabalhadores de Boaz (2.21-23)
                           X O plano feito por Noemi e Rute (3.1-8)
                        J’ Rute desafia Boaz a agir como resgatador (3.9)
                       I’ Rute se identifica como serva de Boaz (3.9)
                    H’ Boaz abençoa Rute (3.10)
                 G’ Boaz promete casar-se com Rute (3.11-15)
              F’ Noemi pergunta; “Quem és tu?” (hebr.) (3.16-18)
           E’ Boaz vai a Belém (4.1)
        D’ Rute e o campo (4.2-12)
     C’ O plano de Rute e Noemi se realiza: casamento (4.13)
   B’ Aceitação do resgatador (4.14-16)
A’ Noemi tem um filho! (4.17)
Epílogo; que filho — Avô do rei Davi! (4.19-22)
A estrutura quiástica do livro está em harmonia com sua estrutura narrativa. O enredo se desenvolve ao longo de cinco atos:
1. Rute emigra de Moabe para Belém (1.1-22)
2. Rute colhe no campo de Boaz (2.1-23)
3. Rute propõe casamento a Boaz (3.1-18)
4. Boaz resgata Rute (4.1-12)
5. Rute dá à luz Obede/Davi (4.13-17)

O enredo é dominado pelos diálogos dos personagens. Lasor (2002, p. 572) destaca que “os vários diálogos da história, não a narrativa do autor apresenta os eventos”. No presente artigo apresentaremos a ideia de que a teologia do livro está presente nos diálogos dos personagens.[2]

3 TEMAS TEOLÓGICOS
3. 1 YHWH é Soberano e Mantenedor
Os diálogos dos personagens no livro de Rute estão repletos de declarações acerca da Soberania de YHWH. No prólogo do livro o narrador informa que após a morte do marido e de seus dois filhos Noemi decide voltar para Belém com suas duas noras pois soube que YHWH estava provendo alimento para seu povo (Rt 1. 6). Entre a saída de Moabe e a chegada a Belém há declarações significativas sobre YHWH nos diálogos.
Na primeira após a saída de Moabe Noemi deseja as duas noras que YHWH as trate com bondade, pois, foi desta forma que elas trataram sua família (Rt 1. 8 – 9). Neste diálogo ela convida suas noras a voltarem para suas famílias e Noemi destaca que a “mão de YHWH está sobre ela” (Rt 1. 13). Tal declaração parece indicar que ela entendia que as adversidades vividas em Moabe eram frutos da mão de YHWH.
As duas noras não queriam voltar, mas com a insistência de Noemi Orfa resolve voltar e Rute decide ficar. Neste momento Rute faz uma das declarações mais conhecidas de seu livro: “teu povo é o meu povo e teu Deus é o meu Deus” (Rt 1. 16). Ela complementa dizendo que ficará com Noemi e que se YHWH quiser lhes separar deverá castigá-la pois só a morte irá lhes separar (Rt 1. 17). A declaração de Rute é importante para o presente estudo, pois, após ela reconhecer o Deus de Israel como seu Deus ela reconhece que ele pode mandar uma calamidade para separa – las.
Na chegada de Noemi e Rute a Belém; Noemi faz declarações significativas sobre o Deus de Israel. Noemi atribui todas as calamidades que acometeram em Moabe a mão de YHWH (Rt 1. 19 – 22). Tais declarações exibem a realidade de que elas acreditavam que YHWH estava no controle de suas vidas.
Noemi concluiu que Shadday havia e voltado contra ela. É significativo o uso da palavra Shadday nestas circunstâncias. Esse é um dos teônimos do Deus de Israel na Bíblia Hebraica (BH) e aparece quarenta e oito vezes. As ocorrências desse vocábulo nos livros Bíblicos anteriores a juízes estão geralmente relacionadas a aliança, a benção em relação a família e a descendência daquele que teme a Shadday (Gn 17. 1; 28. 3; 35. 11; 43. 14; 48. 3; 48. 3; 49. 25; Êx 6. 3; Nm 24. 4, 16) (HAMILTON, 1998, p. 1530; RÖMER, 2016, p. 84; METTINGER, 2015, pp. 108 – 113; BUSH, 2002, p. 92). Robert L. Hubbard (2003, p. 176) destaca:

E mais, o nome era apropriado ao contexto aqui, visto que a BH associava Shadday com o governo cósmico de Deus (Nm 24.4,16; Sl 68.15; Jó 40.2; cf. 34.12,13). Por natureza, grande e misterioso (Jó 11.7), Shadday dispensa bênçãos, promete grandes destinos (Gn 17.1; 28.3; 35.11; 43.14) e distribui destinos aos maus e aos retos (Jó 27.14; 31.2). Como regente cósmico, ele também supervisiona a manutenção da justiça (Jó 8.3; 24.1; 27.2), distribuindo terríveis castigos (Jó 6.4; 23.16; 27.14–23; cf. o terror de sua voz, Ez 1.24; 10.5). As pessoas apelam para ele por vindicação legal e socorro (Jó 8.5; 13.3; 31.35). (Cf. também seu lado terno, Sl 91.1.) Em suma, Noemi referiu-se a Shadday corretamente neste contexto. Sua sorte não poderia ter vindo de outra fonte – como também a futura inversão da sorte dela.

A viúva angustiada acreditava que Shadday que abençoa a família e a descendência havia se posto contra ela. Essa realidade era comum no mundo antigo onde as pessoas acreditavam que tanto as maldições quanto as bençãos eram obras da divindade (WALTON et al., 2018, p. 361). YHWH sendo criador de tudo e mantenedor é visto como Aquele que pesou a mão contra ela. Nesta época ainda não havia uma teologia desenvolvida sobre as forças malignas que agem sobre a terra. O livro de Jó contribui significativamente para a ideia de que existem poderes além de YHWH agindo sobre a terra.
Estabelecidas em Belém elas precisam de alimentos e Rute decide respingar cevada e trigo (Rt 2. 2, 23). Neste contexto YHWH novamente é apresentado como Soberano. É necessário destacar que a primeira fala de Boaz no livro é: “Que YHWH esteja convosco!” e a dos servos dele é: “Que YHWH te abençoe” (Rt 2. 4). No diálogo entre Boaz e Rute ele deseja que YHWH retribua a ela tudo que fez por sua sogra e destaca que ao ir para Belém ela buscou refúgio em YHWH (Rt 2. 12). As falas de Boaz indicam que ele é um homem temente ao Deus de Israel e que crê que esse Deus intervém na história de uma pessoa. Ainda pode se destacar que em sua fala é expressa a ideia de que YHWH cuida de Belém; realidade exibida na fala do narrador no início do livro (Rt 1. 6). O Deus de Israel está atento para as necessidades das pessoas de forma individual e para as do seu povo.
Ao final daquele dia de colheita Rute relata para sua sogra como Boaz lhe foi favorável (Rt 2. 19). Quando Noemi soube de tudo que Boaz fez para ajudar Rute ela salienta: “Bendito seja ele de YHWH, que ainda não tem deixado a sua benevolência nem para com os vivos nem para com os mortos.” (Rt 2. 20 ARA). A fala de Noemi revela que ela entendia que YHWH estava por trás dos atos de bondade de Boaz, isto é, ele foi usado por YHWH para favorecer elas.  
Terminada a colheita da cevada e do trigo Noemi instrui Rute a ir até Boaz e deitar-se aos seus pés para que ele as resgate (Rt 3. 1 – 5). Rute seguiu as instruções de Noemi e se deitou aos pés de Boaz na eira. Neste contexto Boaz e Rute tem uma conversa na qual ele se alegra pela escolha de Rute; ela poderia ter buscado um homem mais jovem para lhe resgatar, mas não foi o caso. Boaz interpreta esse fato como um gesto de bondade por parte de Rute (3. 6 – 11). Ele declara: “Bendita sejas tu de YHWH” (3. 10). Na sequência o narrador conta sobre o resgate de Noemi e Rute por parte de Boaz (4. 1 – 12). Os homens da cidade após presenciarem o resgate e sabendo que Rute iria se casar com Boaz desejam a ele que YHWH abençoe o lar dele por meio de Rute (4. 11 – 12). Percebe – se nesta narrativa que os personagens não só acreditavam que Rute foi abençoada por YHWH por meio de Boaz, mas que ele também seria abençoado por YHWH por meio dela.
Rute e Boaz se casam e ela fica gravida. O fruto do ventre de Rute é apresentado como benção de YHWH para eles e para Noemi que a partir de então teria um resgatador (Rt 4. 4. 13 – 16). Cundall, A. e Morris, L. destacaram (1968, p. 302):

Observe que o filho que nasceu é considerado um presente de Deus. Ao longo deste livro, existe o pensamento consistente de que Deus está acima de tudo e realiza sua vontade. Acabamos de ver que os anciãos e outros consideravam as crianças como um presente de Deus (4.12) e agora vemos o mesmo pensamento do autor.

Os personagens do livro de Rute apresentam a crença de que YHWH estava cuidando deles e lhes abençoando. YHWH pode abençoar ou não e isso pode se dar diretamente por sua mão ou por meio de outras pessoas que temem a Ele. YHWH é soberano e mantenedor daqueles que o temem. Nas palavras de William S. Lasor (2002, p. 573): “Em suma, o livro ensina “plena causalidade” de Deus – uma direção contínua e soberana de tudo.”

3. 2 O Go’el
O resgate de Rute e Noemi é um tema singular. O narrador introduz a segunda parte do livro com um anúncio de enredo: “Tinha Noemi um parente de seu marido, senhor de muitos bens, da família de Elimeleque, o qual se chamava Boaz” (Rt 2. 1). O escritor da inicia a segunda parte do livro de tal forma para criar expectativa no leitor. Os leitores antigos ao lerem tal declaração podiam vislumbrar o futuro resgate e de fato ele acontece. No mundo antigo o papel do parente resgatador era ajudar a recuperar as propriedades da família; se uma pessoa precisasse vender uma propriedade para pagar uma divida o Go’el deveria resgatar para manter a propriedade na família e isso também servia como um sinal de que a pessoa era parte da comunidade da aliança. No caso de Noemi há um agravante, pois, não se tratava apenas do resgate da terra, mas também de Rute, a Moabita.  Uma vez que o Go’el regatasse a terra, também resgataria Rute e o filho dessa relação seria filho do falecido e teria direito a terra da família que foi resgatada. Assim o resgate da terra implica em uma generosidade singular por parte do Go’el (VAUX, 2003, pp. 143 – 145; WALTON et al., 2018, p. 362 – 363; WALTON, 2009, p. 261).
O hebraísta Luís Alonso Schökel (1997, p. 125) em seu dicionário de hebraico faz a seguinte observação sobre o termo Go’el: “Resgatar. Em sentido próprio significa a ação legal pela qual um responsável, perante, ou substituto, recupera bens alienados, livra escravos ou cativos, vinga assassínios, recupera bens consagrados, casa – se com uma viúva sem filhos.”. O uso desta palavra no tronco qal no hebraico é de cunho legal e assim ao que tudo indica nossa palavra foi tomada de um contexto legal e de tal forma é usada na Torá. A palavra está relacionada ao resgate de uma propriedade (Lv 25.47 – 49); ou de uma pessoa que se vende como escravo (Lv 25. 48 – 49); ainda é usado para o resgate de Rute (Rt 3.12; 4.4, 9, 10)[3] (WESTERMANN et al., 1997, p. 401; HUBBARD, 2011, p. 769).
Um uso recorrente de Go'el na Bíblia Hebraica é o teológico. Em diversos texto YHWH é o redentor de Israel (Is 41. 14; 43. 1, 14; 44. 6, 22). YHWH foi considerado pelos escritores Bíblico como o Go'el de Israel.
O texto do livro de Rute exegeticamente e teologicamente não se refere a uma redenção como vista nas páginas do Novo Testamento, porém é inegável a ideia de uma redenção para além das fronteiras do Israel étnico e que é vista de forma clara nas páginas do Novo Testamento (MERRILL, 2009, p. 413; MCGEE, 1991, p. 88).

3. 3 Resgate para os Gentios  
O livro de Rute exibe a realidade de que YHWH não queria salvar apenas Israel. YHWH salva os descendentes de Abraão como também os gentios que entram em relacionamento com Ele. Rute é chamada de Moabita no livro que leva seu nome sete vezes (1. 22; 2. 2, 6, 21; 4. 5, 4. 10). O autor parece querer chamar a atenção do leitor para o fato de Rute ser uma Moabita e tal ideia parece ser reforçada pelo fato de a palavra “Mo’aviyyah, Moabita” aparecer dezesseis vezes na Bíblia Hebraica, ou seja, praticamente a metade das ocasiões em que a palavra aparece então concentradas no livro de Rute (Dt 2. 11, 29; 23. 4; 1 Re 11.1; Ed 9. 1; Ne 13. 1, 23; 1 Cr 11. 46; 2 Cr 24. 26).
A primeira fala de Rute na narrativa merece atenção neste momento. As falas dos personagens Bíblicos revelam quem eles são. A declaração inicial “teu povo é o meu povo e teu Deus é o meu Deus” (Rt 1. 16) revela quem é Rute e qual será seu relacionamento com YHWH. Hubbard (2003, pp. 166 –167) ao comentar sobre a fala de Rute bem salientou:

Ela renunciou suas raízes étnicas e religiosas e adotou a nacionalidade e a religião de Noemi. Dali em diante, seus parentes seriam israelitas; seu deus, Yahweh. Como isso surpreende em vista da acusação amarga que Noemi fez de seu Deus, no v.13! E mais, como é sem paralelos essa afirmação na Bíblia. Enquanto que algumas pessoas estrangeiras louvaram o Deus de Israel (a rainha de Sabá, 1Rs 10.9; Nabucodonozor, Dn 2.47; 3.28,29; 4.34 [port. 37]; Dario, Dn 6.27,28) ou buscaram sua misericórdia (o rei da Assíria, Jn 3.7–9) só duas realmente confessaram lealdade a ele (Raabe, Js 2.11; Naamã, 2Rs 5.15; cf. v.17). Em todo caso, não se deve minimizar o sacrifício e dor envolvidos. Qualquer que tenha sido a motivação dela ou seu conhecimento de Yahweh, ela voluntariamente abandonou a família, o ambiente e arredores conhecidos e suas tradições religiosas. Ela assumiu o futuro incerto de uma viúva amargurada numa terra onde não conhecia ninguém, gozava de poucos direitos legais, e – dada a tradicional rivalidade moabita-israelita – enfrentava possível preconceito étnico (para detalhes, ver o comentário em 2.2).

A realidade de que Rute abandonou os deuses de sua terra e decidiu servir ao Deus de Israel é evidente. Naomi se esforça para que Rute voltasse a seus próprios deuses. Não era incomum as mulheres que se casarem com famílias estrangeiras buscarem a proteção contínua de suas deidades nativas (Gn 31.19; 1 Rs11. 8; 16. 31) (WALTON et al., 2018, p. 360; FLEENOR et al., 2008, p. 338; KEIL et al., 1996, pp. 346 – 347). No diálogo de Boaz com Rute é confirmada essa ideia quando ele destaca que ao ir para Belém ela estava buscando refúgio no Deus de Israel.  Ao falar da confissão de Rute é dito de forma inusitada no Talmud[4]:

Naomi disse a ela: Somos ordenados a observar seiscentos e treze mandamentos. Rute respondeu: “O seu povo é o meu povo” (Rt 1.16). Noemi lhe disse: A adoração idólatra é proibida para nós. Rute respondeu: "Seu Deus é meu Deus" (Rt 1.16). Naomi disse-lhe: Quatro tipos de pena de morte foram entregues a um tribunal com o qual punir aqueles que transgrediram os mandamentos. Rute respondeu: "Onde você morrer, eu morrerei" (Rt 1.17). Naomi disse a ela: Dois cemitérios foram entregues ao tribunal, um para os executados por crimes mais graves e outro para os executados por crimes menos graves. Rute respondeu: "E ali serei enterrado" (Rt 1.17). Yevamot 47b

Bruce Waltke (2015, p. 965) acertadamente observou que “a clássica confissão de fé em Eu Sou (1.16) e seu compromisso com Israel apresentam-na como uma viúva desamparada que [...] toma decisões com base num compromisso deliberado com Eu Sou (1.20,21).” A decisão dessa gentia foi acertada de tal forma que ela entrou para a genealogia do rei Davi e para a do Messias de Israel (4. 18 – 22; Mt 1. 1 – 17).
Eugene Merrill (2009, pp. 412 – 413) bem salientou que a genealogia ao final do livro demonstra como uma gentia, Rute, a semelhança de Raabe pode fazer parte da aliança entre YHWH e seu povo. Merrill ainda destaca que a “ligação entre Abraão (ou Perez aqui, filho de Judá) [5]e Davi, são as alianças que eles, respectivamente, representam que têm mais relevância teológica.”.[6] Assim parece razoável sugerir que a entrada de Rute na aliança de YHWH com seu povo exibe a realidade de que Ele não pretendia salvar somente o Israelita, porém também o não israelita.

4 INTERTEXTUALIDADE
Há uma tensão entre os Moabitas e os filhos de Israel desde o surgimento de ambas as nações. YHWH prometeu para Abraão que dele faria uma grande nação e fez (Gn 12. 1 – 3; 15. 1 – 11; Dt 1. 9 – 11). O nascimento da descendência de Abraão foi miraculoso desde o início, Sara esposa de Abraão não poderia ter filhos e YHWH lhe abre o ventre (Gn 11. 30; 18. 1 – 15). O contexto da promessa de que Sara ficaria gravida é contraposto ao nascimento de Moabe (Gn 18 – 19).
Jacques Doukhan (2016, p. 242) destaca uma relação literária em Gênesis 18 e 19 que merece atenção. Esse vínculo exibe uma dessemelhança desde a origem entre a descendência de Abraão e a de Ló. 
A Visita dos anjos a Abraão (18: 1-8)
   B Nascimento sobrenatural de um filho para Sara e Abraão (18: 9-15)
        C O encontro de Abraão com o Senhor (18: 16-33)
A’ A visita dos anjos a Ló (19: 1 -29)
    B’ nascimento incestuoso dos filhos das filhas de Ló com Ló (19: 30-38)
O contraste está organizado da seguinte forma: 1) A visita hospitaleira dos anjos a Abraão (18. 1-8) contrasta com a visita inóspita dos anjos a Ló (19: 30-38) e 2) o nascimento sobrenatural de um descendente para Abraão (18. 9-15) contrasta com os nascimentos incestuosos dos filhos de Ló com suas filhas (19. 30-38). Os descendentes de Ló são Moabe e Amom.
As relações entre Israel e Moabe ao decorrer da história foram de tensão. Quando o povo de Israel saiu do Egito eles contrataram Balão para amaldiçoar os filhos de Israel; Balão não foi bem sucedido, então eles mandam mulheres Moabitas para corromper os filhos de Israel. Por conta dessa atitude YHWH determinou que nenhum Moabita deveria se assentar na assembleia dEle por dez gerações (Dt 23. 1 – 6). Carl Friedrich Keil e Franz Delitzsch (1996, p. 344) argumentam que o casamento com as filhas dos Moabitas não era proibido na lei, como os casamentos com mulheres cananeias (Dt 7. 3); foi apenas a recepção dos Moabitas na congregação de YHWH que foi proibida (Dt 23. 4). Os antigos rabinos interpretaram da mesma forma (Chullin 62b:7; Gittin 85a:9; Horayot 10b:13; Kiddushin 67b:6; Yevamot 77a:4).
Roy Zuck (2009, pp. 129 – 130) argumenta que a interpretação de que a proibição só referia ao sexo masculino é aceitável, porém parece mais razoável que os Moabitas que foram proibidos de entrar na assembleia de YHWH era os descrentes. Segundo ele aqueles que manifestassem uma fé semelhante a de Abraão seriam aceitos uma vez que esse era o requisito para se fazer parte da aliança. Seja como for, o fato de que Rute se tornou parte da aliança entre YHWH e Israel permanece.
A narrativa da família de Elimeleque parece ser uma quebra nessa tensão. O livro começa de forma bastante irônica dizendo que faltou alimento em Belém e uma família de Israelitas vai até Moabe em busca de comida, o lugar menos indicado para tal empreitada (Rt 1. 1). Eles ficam lá durante um tempo e só voltam quando passa a ter pão em Belém que é a “casa do pão” (1. 6).
Mais tarde Rute, a Moabita, vai se aproximar de Boaz, o Israelita. Mas ao contrário do que aconteceu em Beor, de Petor, quando as Moabitas tiveram relações sexuais ilícitas com os israelitas para lhes fazem pecar contra YHWH ela se porta de forma digna (Nm 25. 1 – 18; Rt 3. 1 – 18). Boaz e Rute se casam e ela passa a fazer parte da genealogia do Messias de Israel (4. 18 – 22; Mt 1. 1 – 17).
5. APLICAÇÃO
O livro de Rute apresenta a ideia teológica de que Deus é o gestor da história e que mesmo em situações desafiadoras pode tirar o melhor. YHWH usa pessoas para auxiliar de formas diferentes aqueles que Ele quer salvar. Neste sentido aqueles que servem ao Deus de Israel devem estar atentos para as necessidades alheias pois são um veiculo de benção na vida de pessoas desoladas pelas adversidades de um mundo de pecado.
Há no livro a indicação clara de que YHWH não é exclusivista e seu plano de salvação inclui o israelita e o gentio. Essa verdade é vista nas páginas da Bíblia Hebraica quando com Israel sai um misto de gente do Egito (Êx 12. 38), no discurso de Moisés quando é salientado que a aliança também envolvia os estrangeiros (Dt 29. 1 – 16), na inclusão de Raabe na linhagem do Messias. Outros exemplos poderiam ser citados, porém esses são suficientes para demonstrar que o plano de YHWH não envolvia apenas os israelitas. A narrativa de Rute neste sentido se soma a um corpo literário mais amplo que também apresenta essa verdade. O Deus de Israel prove os meios para o resgate e não o homem.

6. CONCLUSÃO
A teologia encontrada nos diálogos do livro de Rute nos permite concluir que Deus é Soberano e Mantenedor. YHWH está por de trás dos acontecimentos históricos; seja permitindo algo ou causando algo. Ele prove os meios para suprir as necessidades dos seus filhos seja abençoando a colheita ou provendo um casamento e um neto.
O resgatador provido pelo Deus de Israel resgata o israelita e o gentio, Noemi e Rute. Essas duas mulheres são um exemplo de como YHWH envolve todos no seu plano de resgate. Plano que atinge seu clímax no Novo Testamento com Jesus se entregando por judeus e gentios.

REFERÊNCIAS


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WALTON, J. H. Zondervan Illustrated Bible Backgrounds Commentary (Old Testament) Volume 2: Joshua, Judges, Ruth, 1 & 2 Samuel. Grand Rapids: Zondervan, 2009.
WESTERMANN, C.; JENNI, E. Theological Lexicon of the Old Testament. Massachusetts: Hendrickson, 1997.

ZUCK, B. R. Teologia do Antigo Testamento. Rio de Janeiro: CPAD, 2009.




[1] Para um estudo detalhado sobre a autoria e datação do livro de Rute ver. Cooke, G. A. (1918); Bush, F.W. (2002).
[2] Para um estudo detalhado sobre a importância dos diálogos ver. (ALTER, 2007, pp. 102 – 136).
[3] Por motivos de espaço não será oferecida uma discussão sobre esses significados. Para mais detalhes ver. (HUBBARD, 2011, p. 765 – 769; BRIGGS, 1977, p. 145).
[4] Todas as citações do Talmud Babilônico seguem a numeração de Neusner (2011).
[5] Na tradição judaica a genealogia de Perez é diretamente ligada ao Messias: “R. Berekiah disse em nome de R. Samuel B. Nahman: Pensei que essas coisas foram criadas em sua plenitude; contudo, quando Adão pecou, elas foram estragadas, e elas não voltarão à perfeição novamente até que o filho de Perez [Messias] vem [...]” Midrash Rabbah, Gênesis XII, 6.  Ver. (HUCKEL, 1998).
[6] Ver também Roy Zuck (2009, pp. 127 – 128).

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